O novo coronavírus chegou ao Brasil trazido por pessoas da classe alta, que em boa parte foram contaminadas em viagens internacionais. Mas o vírus se disseminou rapidamente pelas classes baixas e, em grandes centros urbanos, a Covid-19 já mata mais na periferia do que no centro. Notadamente, as populações negras e mais pobres.
Em debate sobre o tema nesta segunda, 27, com o economista Eduardo Moreira e as lideranças do movimento negro Letícia Gabriella e Samuel Emídio, o senador Paulo Paim (PT-RS) alerta que a desigualdade econômica faz da população negra a mais vulnerável à Covid-19 no País.
“A população negra fica em torno de 54% dos habitantes do Brasil. Mas veremos que morrerá em maior quantidade com essa doença, diante da realidade das nossas favelas. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e isso, infelizmente, vai se refletir numa maior letalidade da doença na população negra”, lamentou o senador.
Os dados do Ministério da Saúde confirmam a triste constatação. Até o último dia 10, entre os registros de afetados pela doença, pretos e pardos representam quase 1 em cada 4 dos brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,1%), mas chegam a 1 em cada 3 entre os mortos por Covid-19 (32,8%). Com os brancos ocorre o contrário: são 73,9% entre os hospitalizados, mas 64,5% entre os mortos.
Paim destacou a importância fundamental do Sistema Único Saúde (SUS) para o enfrentamento da pandemia. “Muitos defendem o Estado mínimo. E se tivéssemos o Estado mínimo implantado, hoje, no Brasil? Nós não teríamos SUS. Já pensaram se não tivéssemos o SUS? Como estaria a situação dos profissionais da segurança, dos profissionais de saúde que estão na linha de frente?”, questionou.
“O Estado precisa agir para que as pessoas tenham condição de permanecer em casa e o Estado precisa agir de forma efetiva. Primeiro temos que nos preocupar com a vida das pessoas, depois trabalhar para recuperar a economia”, completou o senador.
Alessandro Dantas
Senador Paim: “O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e isso, infelizmente, vai se refletir numa maior letalidade da doença na população negra”.
Periferias em risco
Antônio Augusto Moura da Silva, professor de epidemiologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), afirma que o alto número de óbitos nas periferias de regiões metropolitanas é uma consequência da condição de vida nesses locais. Segundo ele, a situação irá se agravar nas próximas semanas e, com o sistema de saúde saturado, “pessoas vão começar a morrer em casa”.
Nas periferias, há mais moradores por domicílio, o acesso à água encanada ou não existe ou é intermitente, e a insegurança econômica obriga a sair de casa para obter algum dinheiro. Além disso, segundo a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS são negros, e estes também são maioria dos pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e doenças renais crônicas, considerados comorbidades agravantes para a doença.
Pesquisa publicada em 6 de abril pelas economistas Laura Carvalho (USP) e Luiza Nassif Pires, do Bard College (EUA), e pela médica e pesquisadora Laura de Lima Xavier, da Universidade Harvard (EUA), mostra que entre os brasileiros que frequentaram apenas o ensino fundamental, 42% têm uma ou mais doenças crônicas associadas aos casos mais graves da covid-19, enquanto na média da população essa taxa é de 33%. “A base da pirâmide tem maior probabilidade de precisar de internação no caso de contaminação pelo coronavírus”, afirmam as autoras.
Outro levantamento, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que 1,6 milhão de pessoas de baixa renda moram a uma distância maior que cinco quilômetros de uma unidade de atendimento do SUS capaz de receber pacientes com síndrome respiratória aguda grave (SRAG), manifestação mais severa do coronavírus. Essa parcela da população está na faixa acima de 50 anos e pertence ao grupo dos 50% mais pobres.
O técnico de planejamento e pesquisador da Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais (Dirur) do Ipea, Rafael Pereira, que coordenou o estudo, diz que nessa faixa de renda as pessoas dificilmente poderiam utilizar o sistema de saúde privado. “Em geral, as pessoas de baixa renda moram em regiões mais afastadas, com menos oferta dos serviços de transporte e de saúde” afirmou.
O estudo identificou o mesmo quadro nas 20 maiores cidades do Brasil: regiões centrais com maior número de hospitais, com mais oferta de leitos de tratamento intensivo e respiradores mecânicos, e periferias com dificuldade de acesso ao sistema de saúde.
“As populações de periferia que mais dependem do SUS e são mais vulneráveis ao contágio de covid-19, onde se tem a pior condição de urbanização, de saneamento básico, são as que infelizmente têm a pior condição de saúde”, apontou Pereira.
Desigualdade social
Para Fernando Burgos, professor da FGV-EAESP e especialista em políticas sociais e desigualdade, a tendência é que a crise acentue a desigualdade no Brasil. “Quando começou a pandemia, muitas pessoas diziam que a covid-19 iria igualar os desiguais, pois todos iriam ficar doentes, precisar de respiradores, etc. Isso era uma bobagem. A doença afeta desigualmente os desiguais, e será cada vez mais dura com os mais pobres”, disse Burgos, em entrevista à Deutsche Welle Brasil.
Segundo ele, o país ainda presencia a primeira onda de vulnerabilidade. A segunda virá em um mês, quando ficará mais claro o impacto nas pessoas que foram demitidas ou que não estão conseguindo manter uma renda de subsistência. “A desigualdade é um projeto nacional no Brasil, e a pandemia veio para agravar esse projeto”, lamenta.
Burgos critica o fato de que mais de 30 milhões de pessoas que teriam direito ao auxílio emergencial ainda não conseguiram recebê-lo. “Tínhamos três semanas de antecedência em relação a outros países e já podíamos ter botado dinheiro na mão dessas pessoas mais vulneráveis, mas temos um governo que não acredita na pandemia.”
Pesquisa realizada pelo DataPoder360 de 13 a 15 de abril mostrou que, quanto mais pobre, maior o impacto da covid-19 na renda. O instituto perguntou se o coronavírus prejudicava a renda ou o emprego. Entre os desempregados ou sem renda fixa, 77% responderam que sim. O percentual cai para 57% entre os que ganham até dois salários mínimos, e para 26% entre os que recebem mais de dez salários mínimos.
Medidas urgentes
Em nota técnica publicada pela Rede de Políticas Públicas e Sociedade, os pesquisadores Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole, e Ian Prates, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), estimaram o número de trabalhadores afetados pela Covid-19 e concluíram que 81% da força de trabalho (75,5 milhões de pessoas) experimentam algum tipo de vulnerabilidade em função da pandemia.
Segundo os cálculos do grupo, 38% da força de trabalho pode ser considerada altamente vulnerável, por causa da informalidade de seus vínculos. “Por terem vínculos mais frágeis com seus empregadores, essas pessoas tendem a ser mais prejudicadas pela crise, por causa do potencial de rompimento desses vínculos”, observou o sociólogo Ian Prates ao jornal ‘ Folha de S. Paulo’.
Em todo o mundo, existem 3,3 bilhões de trabalhadores, mas 2 bilhões atuam na economia informal, representando a fatia mais vulnerável do mercado de trabalho. O fechamento causado pela pandemia também atingiu pesadamente setores chave, gerando uma queda de 60% no salário dos trabalhadores já no primeiro mês da crise. Os dados fazem parte da terceira edição do Monitor OIT: Covid-19 e o mundo do trabalho, divulgado nesta quarta, 29.
Em comunicado, Guy Ryder, diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), afirmou que é preciso proteger, urgentemente, os trabalhadores em situações mais vulneráveis. Ryder lembra que milhões de trabalhadores estão sem salário, sem comida, sem segurança social e sem futuro, e que 1,6 bilhão de pessoas na economia informal estão afetadas na sua subsistência por causa da pandemia.
A OIT pede medidas urgentes e flexíveis de recuperação para trabalhadores e empresas, especialmente os menores empreendimentos e os que atuam na economia informal. Para a agência, as medidas de recuperação da economia devem focar na geração de empregos com base em políticas fortes e melhores recursos de proteção social para os trabalhadores.