Na Carta ao Povo de Deus, 152 bispos progressistas da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entre eles o arcebispo emérito de São
Paulo, dom Claudio Hummes, o bispo emérito de Blumenau, dom Angélico Sandalo
Bernardino, e o bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), fazem pesadas críticas
ao governo de Jair Bolsonaro (ex-PSL), especialmente na falta de gestão para
controlar a pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e a crise econômica que
afeta os mais pobres.
"Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente
a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas
crises", diz trecho da carta.
“O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história,
comparado a uma ‘tempestade perfeita’ que, dolorosamente, precisa ser
atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem
precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate
sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente
da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise
política e de governança”.
O documento segue afirmando: “Assistimos, sistematicamente, a discursos
anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de
mortes pela Covid-19 (...) e os conchavos políticos que visam à manutenção do
poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e
morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da
Igreja”, afirmam os bispos na carta que também critica as reformas trabalhistas
e previdência que, segundo eles, ao invés de melhorar a vida dos mais pobres,
“mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo”.
É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que
privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande
maioria da população. Carta dos 152 bispos da CNBB-
De acordo com o documento, não é a ’pessoa humana e o bem de todos’
que está no centro das preocupações e medidas do atual governo, "mas
a defesa intransigente dos interesses de uma economia que mata, centrada no
mercado e no lucro a qualquer preço".
Leia a "Carta ao Povo de Deus" na íntegra:
"Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em
profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão
evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz.
Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento
em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um
serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto
sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem
consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo”
(Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não
consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria
ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns
indivíduos necessitados [...], uma série de ações destinadas apenas a
tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus [...] (Lc 4,43
e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino
de Deus é dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do
Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou
de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente
em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade
estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.
O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história,
comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser
atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem
precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate
sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente
da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise
política e de governança.
Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso país à prova,
exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do
que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e
pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da
vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta
sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não
comporta indiferença.
É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente,
em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a
narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal,
não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram
sobre o povo brasileiro.
Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente
pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores,
latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os
direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num
mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a
nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia
Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões
neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos
anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de
mortes pela covid-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o
caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são
projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à
manutenção do poder a qualquer preço.
Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco
suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no
seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em
abundância” (Jo 10,10).
Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a
incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As
reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos
mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do
povo.
É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não
como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres,
desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos,
afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum
e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que
privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande
maioria da população.
O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem
de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata”
(Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço.
Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo
Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar
contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por
se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o
apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de
trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o
recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas,
que mobilizam uma massa de seguidores radicais.
O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos
estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação
pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga;
nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do
meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de
processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância
pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na
desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença
pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e
mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da
Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação
do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares
dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão
adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos
empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no país, privilegiando
apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos
financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número
de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal
descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo
da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o
Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e
vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas,
ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que
vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil.
Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e,
lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de
superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel.
O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para
Enfrentamento à covid-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de
não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água
potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia
intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios
indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB,
Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).
Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças,
provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes.
Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no
Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos
fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário.
Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua
Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio,
ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino
de Deus e sua justiça?
O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um
amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a
democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja
restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de
Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos
públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental,
com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e
saúde integrais e de qualidade para todos.
Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da
CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa
Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo
Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos
movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para
o Brasil.
Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos
ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como
nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs.
É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos
faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para
divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi,
12/4/20).
Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros
espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam.
Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se
aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm
13,12).
O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça
de vós.
O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).
Fonte: CUT