O desencontro de informações dos órgãos responsáveis pela saúde pública, em especial os do Ministério da Saúde, sobre a febre amarela gerou inicialmente apreensão e pânico na população, seguidos de falsa sensação de segurança. Hoje os principais desafios são motivar as pessoas a se vacinarem, fazer com que acreditem que a vacina é segura e que a doença veio para ficar de forma endêmica mesmo na região Sudeste do país, o que demanda atenção permanente. O ministro Ricardo Barros, do ilegítimo governo Temer, chegou a afirmar em setembro de 2017 que o surto havia acabado e que mesmo assim toda a população seria vacinada de modo preventivo. Os índices de vacinação estão muito aquém disso e os números de casos de febre amarela e de mortes deles decorrentes continuam crescendo.
Em vez de campanhas educativas voltadas a oferecer explicações sobre a doença, para informar que ela se transmite por meio de vetores e como as pessoas devem agir, assistimos com frequência a entrevistas inconsistentes, de cunho personalista e centradas na autopromoção. Alguns fatores contribuíram para isso, entre eles observam-se a perda de prestígio dos profissionais que atuam em saúde pública nas ações de planejamento, nas decisões sobre estratégias de comunicação, prevenção e controle de doenças e agravos à saúde, o desmonte de equipes multiprofissionais de vigilância em saúde (epidemiológica, sanitária, meio ambiente e saúde do trabalhador) na estrutura atual do Sistema Único de Saúde (SUS), a centralização das decisões em instâncias de governo submetidas à logica do loteamento político em detrimento da atuação de técnicos, especialistas, pesquisadores, gestores municipais, trabalhadores e lideranças sociais.
A febre amarela urbana está erradicada no Brasil desde 1942, fruto do trabalho de pesquisadores e profissionais que dedicaram suas vidas ao estudo e controle de doenças transmitidas por insetos (arboviroses) e outros meios, como é o caso do médico, epidemiologista e sanitarista Oswaldo Cruz. Transmitida no ciclo urbano pelo mosquito Aedes aegypti, o risco de sua volta é motivo de grande preocupação. Trata-se do mesmo vetor de outras doenças como dengue, zika e chikungunya, que têm comportamento sazonal, com redução de casos no inverno e diminuição das chuvas, o que pode ter induzido o ministro a cometer erro de avaliação. Hoje, ao lado da epidemia de dengue, a preocupação maior é com a alta incidência de casos de febre amarela silvestre, cujo vírus é transmitido entre macacos (hospedeiros) e seres humanos, quando esses adentram as matas ou vivem em seu entorno, pelos mosquitos Haemagogus e Sabethes.
Fruto da desinformação, observa-se mortandade de macacos de diferentes espécies pela ação de humanos. Entretanto, é preciso destacar que esses animais são vítimas da doença na sua forma silvestre e que, estando contaminados pelo vírus – ao serem encontrados mortos ou capturados vivos –, são um importante sinal de que o vírus da febre amarela está circulando próximo aos humanos em regiões intermediárias (periurbanas). Mais grave ainda, a diminuição da população de símios faz com que haja mudança de hábitos desses mosquitos que vivem nas copas de árvores em florestas e passem a buscar outros animais para sua alimentação, favorecendo a circulação do vírus da febre amarela entre humanos. Na situação que temos hoje em São Paulo foram priorizadas estratégias de bloqueio vacinal para populações que habitam, trabalham ou frequentam regiões com matas, próximas a áreas de reflorestamento e a corredores ecológicos. Entretanto, esse bloqueio já não é suficiente.
A vacina disponível é fabricada com vírus vivo atenuado, razão pela qual não deve ser usada para gestantes em regiões de baixa incidência de febre amarela, pessoas com alergia grave a ovo, sistema imunológico imaturo (crianças abaixo de nove meses) ou comprometido (imunodeprimidos), em razão da idade ou de doenças debilitantes. É a mesma vacina utilizada desde o ano de 1937. O que se configura em um exemplo típico do que ocorre com as chamadas doenças negligenciadas, que afetam sobretudo países pouco desenvolvidos e populações de baixa renda e condições inadequadas de vida, uma vez que laboratórios privados pouco investem para aprimorar sua tecnologia de produção. Em que pese isso, é preciso enfatizar que a vacina é segura e eficaz, seja usando a dose completa ou fracionada.
A dose completa confere imunidade duradoura e a fracionada requer reforço vacinal após oito anos. Uma questão relevante a considerar é se o país dispõe de estoque suficiente de vacina para proteger toda a população, pois em situação de endemia a estratégia de bloqueio em áreas de maior risco é insuficiente para impedir o avanço da doença na forma silvestre e que voltemos a conviver com a febre amarela urbana. Recomenda-se, então, que toda a população seja vacinada, exceto naquelas situações em que não é aconselhada ou em que o risco de ocorrer um acidente vacinal supera o de a pessoa adquirir a doença.
O uso de doses fracionadas sugere que há insegurança dos governos quanto à disponibilidade de vacina em quantidade suficiente para imunizar o conjunto da população, lembrando que são poucos laboratórios que a produzem e seu uso se estende a outros países. Dessa forma, requer-se transparência por parte do Ministério da Saúde, das Secretarias de Estado e das Secretarias Municipais de Saúde sobre o estoque existente, nossa capacidade de produzi-la em escala a partir de laboratórios públicos e de adquiri-la no mercado.
Ao lado disso, é preciso intensificar o combate aos mosquitos vetores ou potencialmente transmissores dessas arboviroses. Para tanto, urge recompor as equipes de combate a endemias e zoonoses, retomar a Estratégia Saúde da Família e ações de Atenção Básica, que vêm sendo abandonadas pelos governos Temer e Alckmin, na medida em que não atuam de modo solidário aos municípios e deixam de realizar concursos públicos, instituir planos de carreira, formar trabalhadores especializados, propiciando-lhes remuneração condigna e condições adequadas de trabalho para as ações de promoção, prevenção e combate a vetores.
A lógica que prevalece hoje é a da terceirização da contratação de pessoal e de promover gestão privada de serviços, territórios e sistemas por meio de Organizações Sociais e outras modalidades de contratos. Como foi possível termos sido pegos de surpresa com a migração de mosquitos contaminados pelo vírus e de casos de febre amarela silvestre da região Norte do país em direção a Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia sem que providências tivessem sido adotadas a tempo? Faltaram planejamento e prioridade às ações de saúde pública? Por que não houve vacinação em massa nos estados vizinhos, sobretudo em zonas rurais, e agilidade nas providências?
As pessoas também perguntam o que poderia ter sido feito para evitar que o vírus, circulando entre macacos, chegasse novamente bem próximo a grandes conglomerados urbanos? O combate aos mosquitos foi inadequado? No estado de São Paulo, os poucos casos urbanos e as mortes confirmadas decorreram de febre amarela silvestre adquirida no entorno das cidades. Parques estaduais e municipais foram fechados em razão de macacos encontrados mortos. Se houvesse sido realizada a vacinação da população mais vulnerável a tempo e intensificado o combate aos mosquitos nos estados vizinhos, nas matas e regiões urbanas com a utilização de equipes volantes, o risco hoje nas regiões urbanas seria certamente menor. Sobre fatores que também podem ter influenciado o aumento do número de casos citam-se em estudos acadêmicos ao lado da baixa imunização da população, entre outros, influência do clima, relação com o desastre ecológico de Mariana, uso de agrotóxicos em larga escala e ampliação da fronteira agrícola do país.
Monitoramento realizado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo mostra que o deslocamento dos casos de febre amarela silvestre em macacos e humanos em direção à Mata Atlântica e ao litoral do estado se faz em velocidade maior que a esperada e que, mesmo assim, a procura por vacinas permanece bem abaixo do desejável. Assim, urge mobilizar a sociedade para que, consciente da gravidade da doença e da situação epidemiológica, atue junto ao Poder Público para a adoção das medidas de prevenção e dos cuidados preconizados. Tarefa para qual os meios de comunicação podem cumprir importante papel.
A vigência da Emenda Constitucional 29, que congela por vinte anos os gastos em saúde e outras políticas sociais, o subfinanciamento crônico do SUS e a não execução dos orçamentos anuais autorizados pelos parlamentos para as ações de vigilância em saúde, como ocorreu no ano de 2017 no estado e no município de São Paulo, são fatores agravantes, mostrando que ao lado da pouca importância dada por esse governo à saúde pública, é forçoso reconhecer que a situação atual decorre de estratégias equivocadas, incompetência administrativa e falta de compromisso com o SUS, com as universidades públicas e instituições de pesquisa.
Especialistas, técnicos renomados, pesquisadores experientes, gestores competentes, trabalhadores dedicados, cidadãos atentos e órgãos de comunicação que exercem o controle público alertaram que programas importantes dos governos Lula e Dilma estavam sendo interrompidos e que a epidemia de dengue era apenas um sinal de que haveria outras situações tão ou mais preocupantes, uma vez que experiências internacionais mostram que até mesmo o Aedes albopictus deve ser monitorado. Agora é preciso correr atrás do prejuízo! E o Ministério da Saúde ora diz que a situação está sob controle, bastando vacinar os que estão sob maior risco, ora fala em vacinar a população em geral.
Ocorre que há uma lógica perversa em que certos mandatários e gestores – sem qualificação para os cargos que ocupam – colocam-se prioritariamente a serviço de grupos econômicos e de interesses privados, privilegiando compromissos partidários com quem os indicou, buscando vantagens eleitorais e pessoais em detrimento do interesse público e do respeito às diretrizes e princípios de sistemas universais, como o SUS. De forma irresponsável contribuem para jogar na lama a reputação daquele que é mundialmente reconhecido como sendo um dos mais avançados, equânimes e bem-sucedidos sistemas públicos de saúde, que sempre teve elevado reconhecimento pelas ações de relevância pública que sempre realizou com grande competência, como é o caso das ações de vacinação.
Necessário, portanto, acionar já os Ministérios Públicos e a Justiça para haver a responsabilização objetiva, pessoal, desse tipo de mau gestor e, por ocasião da elaboração de programas de governo para as eleições de 2018, deixar claro que não entregaremos cargos estratégicos como os da área da saúde para a política de governabilidade e que vamos prover esses cargos com profissionais que tenham afinidade com o SUS e estejam dispostos a trabalhar por novo tipo de pacto federativo, que exige a instalação de instâncias de governança regional, voltadas ao planejamento, e tomada de decisões de modo compartilhado entre estado, municípios e sociedade organizada, de maneira a superarmos a autossuficiência e o agir autoritário daqueles que acham que o acesso a cargos de direção, seja por meio de golpes ou mesmo em decorrência de vitórias eleitorais, lhes dá o direito de concentrar decisões, prescindir da inteligência alheia e da participação social.
*Carlos Neder é médico formado pela USP, mestre em Saúde Coletiva pela Unicamp, foi secretário Municipal de Saúde de São Paulo (governo Luiza Erundina, 1990-92) e atualmente exerce mandato de deputado estadual pelo PT
Fonte: Rede Brasil Atual